Para o professor Carlos Rui Ferreira do Centro Português de Yoga
Aguentar os cavalos
O primeiro asana não foi determinante. Julgo que teria uns 20 anos, e o corpo era então para mim um absoluto desconhecido. Conhecia‐lhe os pêlos, que odiava, a maçã‐de‐adão, que me dava comichão sempre que lhe tocava, e a memória (jónica) de um pé‐de‐atleta. Gostava dos meus braços firmes, das veias salientes e de fazer pinos, pontes e flic‐flaques. Talvez por isso tenha ganho simpatia imediata pelo primeiro Urdhva Dhanurasana que fiz, como se costuma dizer, com uma perna às costas. De resto, sentia‐me um calhau com olhos que sonhava ser bailarino ou voar nas passarelas.
O professor, um «mestre» suspeito, chamava‐se António e era um rapaz impertinente que vociferava: «o Yôga não é o Yoga!» Segundo ele, o som nasalado era o som verdadeiro, o caminho do samadhi. De Yoga ou Yôga eu pouco sabia, mas recordo‐me que ouvira de todos os entendidos ser este o «caminho da união». Esbocei o meu primeiro Tadasana, também chamado de Samasthiti, sem saber que de nada me valeriam os pinos e as pontes, se não entendesse o simbolismo da firmeza e da determinação que definem o Tada (a montanha).
Na verdade, estava deserto de me raspar da classe, pois a macaqueação de nos vestirem todos, os rapazes, de licra azul, e as raparigas de maillot rosa, deixara‐me em estado de choque. A minha personalidade não admitia fardas (parecíamos, de facto, soldadinhos de cu de chumbo) e de então para cá continuo a teimar nessa objecção.
Quando a classe terminou, com uma coreogra a apoteótica de Pranayamas (a que chamavam «inalações positivas») disse ao professor António que tinha gostado muito do cheiro a incenso e dos címbalos de fundo, mas que aquilo era areia a mais para a minha trotineta. Passaram sete anos até voltar a uma classe de Yoga, desta vez sem o empecilho do «ô».
Era então um feliz pugilista, de costas arqueadas para dentro, belos bíceps e pernas como longarinas, mas do corpo (dos corpos) continuava um desconhecedor. A minha companheira, que saíra das aulas de dança para um ashram (em pontas) insistia: «Tens de experimentar. Vai‐te fazer bem. Vai‐te domar o feitio.» Tinha ficado com o trauma das licras azuis e dos finais apoteóticos, mas acabei por experimentar.
Recordo que saí da classe a pensar coisas como: «Amanhã não me mexo; afinal isto não é uma ginástica exótica; de que me adiantam os músculos se não sei coordenar a respiração?; se calhar é com isto que vou aguentar os cavalos.»